Cuidados com familiares e acúmulo de tarefas domésticas trazem consequências emocionais e econômicas
Por Ediane Tiago
“Apesar de dividirmos as atividades, eu me sinto mais sobrecarregada pela carga emocional do cuidado com as crianças.” O depoimento, escrito por uma das 2.641 mulheres entrevistadas para uma pesquisa realizada pela Gênero e Número e a SOF –Sempreviva Organização Feminista, reflete a realidade de muitas brasileiras desde que o novo coronavírus se espalhou pelo globo. Os resultados, consolidados no relatório “Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, revelam como a crise da saúde e o isolamento social acentuaram a desigualdade de gênero no cuidado familiar e na divisão das tarefas domésticas.
Os dados mostram que 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém desde que foram anunciadas as primeiras medidas de distanciamento. No meio rural, o índice foi ainda maior, chegando a 62%. De acordo com a pesquisa, não há possibilidade de discutir o mundo pós-pandemia sem levar em consideração o quanto a Covid-19 evidenciou a crise do cuidado – uma dimensão da vida que exige discussão madura sobre divisão de tarefas e o valor do trabalho doméstico para a sociedade.
O tema do cuidado foi tratado recentemente pelo Podcast das EconomistAs, em entrevista com Luiza Nassif, pesquisadora do programa de Igualdade de Gênero e Economia e professora dos programas de pós-graduação e teoria econômica e políticas públicas do Levy Economics Institute of Bard College, nos Estados Unidos (ouça o episódio clicando aqui). A linha de pesquisa da Luiza é a economia do cuidado, campo que estuda as atividades necessárias para a sobrevivência e reprodução do ser humano. A maior parte dessas tarefas está centrada no lar. São elas limpar a casa, cuidar dos filhos, cuidar dos idosos, cozinhar, lavar e passar roupas. “Essas atividades são, majoritariamente, feitas por mulheres e, frequentemente, não são remuneradas”, comenta.
Com o avanço da pandemia – aponta a pesquisa realizada pela Gênero e Número e SOF – a dupla jornada ficou mais pesada. No total da amostra, 41% das mulheres que seguiam empregadas durante a pandemia, com manutenção dos seus salários, afirmaram trabalhar mais na quarentena. Elas alegam que, com as atividades remotas, as jornadas de trabalho se estendem. “Além disso, as relações entre trabalho e tarefas domésticas se imbricaram ainda mais. A pandemia mostrou a intensificação do trabalho feminino. Elas trabalham mais porque as tarefas ainda não são distribuídas igualmente no ambiente doméstico”, diz o relatório da pesquisa.
Outro dado relevante é o percentual de mulheres que indicou aumento na necessidade de monitoramento e companhia (72%). Ou seja, quase ¾ das mulheres responsáveis pelo cuidado de crianças, idosos ou pessoas com deficiência afirmaram que precisam ficar mais atentas à movimentação ou passar mais tempo ao lado de seus familiares. A informação deixa claro que a rotina do home office é um desafio para quem cuida dos seus.
As declarações do estudo estão em linha com as informações divulgadas pelo IBGE. De acordo com dados do estudo Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, as mulheres dedicam, em média, 21,4 horas semanais às atividades domésticas. Enquanto os homens dedicam 11 horas. Esse desequilíbrio, dizem os pesquisadores do IBGE, explicam a menor participação das mulheres no mercado de trabalho e o maior envolvimento delas em atividades não remuneradas.
A dupla jornada penaliza a mulher. “Mães relatam perdas salariais, segregação ocupacional e dificuldades em progredir na carreira”, alerta Luiza. Esses prejuízos são confirmados pelo estudo do IBGE. Segundo a pesquisa, a presença de crianças com até três anos de idade nos domicílios tem relação com a menor inserção ocupacional das mulheres. O nível de ocupação, proporção de pessoas ocupadas na população em idade de trabalhar, é menor entre as mulheres de 25 a 49 anos que vivem em lares com crianças nessa faixa etária. Entre elas, o nível de ocupação é de 54,6%, enquanto a das que vivem em casas onde não há essa presença é de 67,2%. A situação é ainda mais crítica para as mães pretas e pardas. Segundo o IBGE, menos da metade (49,75%) delas estava trabalhando quando os dados foram apurados.
Dados da PNAD Contínua também revelam os desafios das mulheres para equilibrar a vida profissional e a doméstica. No terceiro trimestre de 2020, a taxa de desemprego no Brasil chegou a 14,6%. Entre as mulheres, o índice chega a 16,8% e, entre os homens, 12,8%.
Maior exposição à violência
Com a extensão da quarentena, a percepção da violência também cresceu entre as mulheres. De acordo com os dados apurados pela pesquisa da Gênero e Número e SOF, 91% das mulheres acreditam que a violência doméstica aumentou ou se intensificou durante o período de isolamento social. Quando perguntadas sobre suas experiências pessoais, 8,4% delas afirmaram ter sofrido alguma forma de violência no período. O percentual aumenta entre as mulheres nas faixas de renda mais baixa. Entre as mulheres com renda familiar de até um salário-mínimo, 12% afirmam ter sofrido violência.
Para Luiza, quando a mulher tem renda, ela fica menos suscetível à violência doméstica. “Além de poder de barganha dentro do lar, essa mulher tem maior possibilidade de abandonar o parceiro”, diz. A dependência financeira é um fator que pode gerar maior incidência de violência contra a mulher. “Neste sentido, dar valor econômico ao cuidado é fundamental para proteger as mulheres, oferendo a elas condições de sustento e escolha”, defende.
Link: http://www.generonumero.media/metade-mulheres-passou-cuidar-pandemia/