A pandemia oculta pela pandemia

Com o distanciamento social, as mulheres estão mais expostas a episódios de violência doméstica.

 Por Ediane Tiago*

Em janeiro de 2020, o governo chinês isolou a cidade de Wuhan – onde surgiu o Sars-Cov-2, vírus causador da Covid-19. O “lockdown” durou mais de dois meses e se mostrou estratégia eficiente para barrar a transmissão da doença. Mas as trancas das portas não impediram o vírus de viajar pelo mundo e,  em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia do novo coronavírus.

Em estado de alerta, países estabeleceram estratégias para restringir a circulação de pessoas e as aglomerações – do bloqueio total (ou lockdown) às medidas de distanciamento social. Líderes políticos recorreram aos meios de comunicação e pediram para as pessoas ficarem em casa.

Do ponto de vista da gestão de uma crise sanitária, ficar em casa é uma via civilizada e inquestionável. Ela não é agradável, mas é necessária para reduzir a transmissão do vírus e evitar o colapso do sistema de saúde. Esse remédio amargo tem, no entanto, efeitos colaterais que atingem em cheio questões como a violência doméstica contra as mulheres. Presas em casa com seus agressores, as vítimas ficam mais vulneráveis. “Este é um problema antigo. Não surgiu na pandemia, mas se intensificou com as quarentenas”, lembra José Raimundo Carvalho, professor titular da Universidade Federal do Ceará.

Em dezembro do ano passado, Carvalho coordenou uma sessão especial sobre violência doméstica no 42º Encontro Brasileiro de Econometria – evento anual realizado pela Sociedade Brasileira de Econometria (SBE). Dividiu a tela da videoconferência com as professoras Maria Dolores Montoya-Diaz, Fabiana Rocha e Paula Pereda, todas da Universidade de São Paulo, e com os professores Rodrigo Moreno-Serra, da Universidade de York (Reino Unido), e Francisco Pino, da Universidade do Chile. “Há um consenso entre os especialistas de que houve aumento significativo nos episódios de violência doméstica durante a pandemia”, pontuou Carvalho logo no início da discussão.

Ele lembra que a violência contra a mulher é um tema relevante pela sua gravidade e prevalência em todo o mundo. “Não podemos ignorar o que está acontecendo dentro dos lares”, diz. No Brasil, ressalta, apesar de avanços como a promulgação da Lei Maria da Penha, há muito trabalho a ser feito.

Carvalho tem razão. Estatísticas sobre o crescente número de incidentes começaram a aparecer em relatórios e estudos especializados. O Instituto Igarapé publicou, em dezembro do ano passado, o relatório “Violência Contra Mulheres: como a pandemia calou um fenômeno já silencioso”, assinado pelas pesquisadoras Renata Avelar Giannini, Eva Ferenczi, Isis Araújo e Katherine Aguirre. Segundo os dados apurados, durante os meses de isolamento social mais duro [entre março e junho de 2020], houve um aumento de 16% no número de feminicídios no Brasil. [São considerados feminicídios os homicídios de mulheres decorrentes de violência doméstica ou discriminação de gênero].

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) também identificou o problema. “Entre março e abril do ano passado,  12 estados registraram aumento médio de 22% nos feminicídios”, cita Moreno-Serra – explicando que a comparação foi feita com dados apurados no mesmo período de 2019. O professor de York destaca que antes da pandemia o Brasil ocupava o quinto lugar no ranking global de feminicídio. “Mais de 50% dos crimes são cometidos por cônjuges ou parceiros”, aponta.

No Chile, o pesquisador Francisco Pino colheu informações para entender os efeitos da quarentena na violência doméstica. “Os dados são condizentes com os observados em outras situações”, diz. De acordo com ele, a literatura já aponta que esse tipo de violência cresce quando as famílias passam mais tempo juntas e estão distantes de suas redes de apoio. As notificações, por exemplo, são mais numerosas aos finais de semana, feriados e em períodos de férias.

Para a maioria das mulheres, ficar em quarentena significa gerenciar as crianças, cuidar da casa e lidar com restrições financeiras causadas pela crise econômica e pelo desemprego. “As políticas públicas anunciadas no Brasil e em outros países – como o auxílio emergencial – dão conta de mitigar os efeitos econômicos da pandemia. Dificilmente, elas olham para os problemas sociais”, comenta Moreno-Serra. O pesquisador ressalta que a questão não é íntima. “A violência doméstica contra a mulher traz custos para o sistema de saúde, uma vez que sequelas físicas e psíquicas de longo prazo devem ser tratadas.”

Os prejuízos já foram mapeados pela Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo a entidade, os custos globais da violência contra a mulher somaram US$ 1,5 trilhão em 2016. Só na União Europeia, os prejuízos econômicos estão estimados em € 228 bilhões por ano. Outra questão relevante é o impacto sobre o mercado de trabalho. Mulheres agredidas têm mais dificuldade em evoluir na carreira ou encontrar emprego. “Esses desafios são maiores para as vítimas mais pobres, que, além de lidar com a violência, lutam contra uma lacuna na qualificação”, diz Moreno-Serra.

O maior desafio dos pesquisadores está na escassez de dados sobre violência doméstica contra mulher – um fenômeno silenciado pela subnotificação dos crimes. “Durante a pandemia, o acesso aos canais de ajuda e denúncia é mais restrito, uma vez que a vítima passa mais tempo com seu agressor”, comenta Maria Dolores. Para identificar as tendências e capturar o fenômeno, é preciso recorrer a uma série de base de dados – das centrais de ajuda ao registro dos crimes.

A pesquisadora defende diferentes abordagens na captação de dados e esforço da comunidade científica para fazer as correlações necessárias na avaliação dos efeitos da pandemia sobre os índices de violência contra a mulher. “É preciso entender a dinâmica dos incidentes”, alerta Maria Dolores. Segundo ela, ao olhar os dados absolutos – como número de ligações aos serviços de emergência e queixas nas delegacias – há uma redução nos registros. Tem-se a impressão de que a situação melhorou. “Mas o aumento dos feminicídios confronta a informação, demonstrando que, na verdade, a subnotificação amplia o grau da violência”.

Para estudar este tema urgente, Paula, Fabiana e Maria Dolores se engajaram em uma iniciativa internacional que estuda os desdobramentos da pandemia em diferentes áreas. Em parceria com o Centro de Economia da Saúde Alcuin Block, da Universidade de York (Reino Unido) vão investigar os impactos das medidas de distanciamento social sobre a incidência da violência doméstica contra a mulher. O projeto de pesquisa tem o apoio da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), do The Global Challenges Research Fund e  do Newton Fund – iniciativa do governo britânico que visa promover o desenvolvimento econômico e social dos países parceiros por meio da pesquisa, ciência e tecnologia. “Nosso objetivo é avaliar as consequência sociais indiretas do aumento da violência doméstica sobre os custos com saúde e sobre o mercado de trabalho”, afirma Maria Dolores.

As pesquisadoras pretendem analisar ainda se existe algum efeito atenuador do auxílio emergencial sobre o número de feminicídios. Para elas, ao desvendar questões tão complexas, será possível abastecer com informação qualificada os órgão responsáveis pelo desenho de políticas públicas para proteção das mulheres.

 

Ediane Tiago é jornalista especializada na cobertura de ciência, tecnologia e inovação e colaboradora do grupo das EconomistAs.

 

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