No novo episódio do podcast das EconomistAs, Laura Karpuska entrevista a pesquisadora Luiza Nassif, graduada e mestre em Economia pela UFRJ e PhD em Economia pela The New School for Social Research. Atualmente, ela é pesquisadora no Levy Economics Institute of Bard College.
Luiza contou que sua trajetória na Economia se deu por acaso: seu primeiro curso foi Matemática Aplicada, mas ela sentiu falta da questão social, e acabou transferindo para Economia. No entanto, apenas no doutorado ela começou a se encontrar na área. A influência de Luiza Nassif foi decisiva para a intenção de estudar no exterior, demonstrando a importância da mentoria feminina.
O que é a economia do cuidado? Segundo Luiza, são atividades da esfera doméstica que não são remuneradas e também majoritariamente cumpridas por mulheres. No Brasil, a falta de dados sobre esse assunto gera um impasse para o andamento do debate: em tempos anteriores, apenas um membro da família saía para trabalhar e o salário dele era suficiente para manter uma família. Atualmente, a configuração de dois membros no mercado de trabalho remunerado terceiriza as atividades do cuidado, o que consequentemente recai como exploração para outra categoria social. Questões de gênero e raça atravessam esses problemas.
Nassif lembra da importância de incentivar alunos pertencentes à minorias sociais, de modo que o ambiente acadêmico seja mais diversificado. Ela também lembrou de como é importante ter um auto-conhecimento não apenas sobre as discriminações que sofremos, mas também sobre os privilégios que temos.
Acompanhe a íntegra da entrevista:
Laura Karpuska: Sejam bem-vindas e bem-vindos ao Podcast das Economistas. Um programa de economia focado em conhecer a voz das nossas colegas pesquisadoras e mostrar que Economia também é coisa de mulher. Esse podcast é afiliado ao grupo de Economistas da USP e eu sou a Laura Karpuska, sou pesquisadora da GV em São Paulo e sou associada ao grupo das Economistas.
A gente vai continuar aqui hoje com o nosso bate papo sobre Economia e a gente aproveita também para conhecer mais sobre essas mulheres, os desafios que elas encontraram nas carreiras e que dicas elas têm para nós e para quem está começando agora na carreira.
A gente quer mostrar que a Economia é uma ferramenta como tantas outras que pode nos ajudar a entender o mundo em que a gente vive e, também, melhorar a vida das pessoas.
Para isso hoje a gente trouxe a pesquisadora Luiza Nassif. Ela vai falar sobre economia do cuidado, políticas públicas focadas em questões de gênero e sobre o debate de economia no Brasil.
A Luiza é pesquisadora do programa Igualdade de Gênero e Economia e professora dos programas de pós-graduação e teoria econômica e políticas públicas do Levy Economics Institute of Bard College nos Estados Unidos. Ela tem bacharelado e mestrado em Economia pelo FRJ e ela é PhD em Economia pela The New School for Social Research também nos Estados Unidos.
Luiza a gente está muito feliz em ter você aqui hoje com a gente. Muito obrigada por ter aceitado nosso convite.
Conta para as nossas ouvintes como você foi parar em Economia. Qual que foi a sua trajetória até aqui?
Luiza Nassif: Bom dia Laura. Muitíssimo obrigada pelo convite. Eu que fico muito, muito contente de poder participar e conversar com vocês. Parabéns pelo podcast. É muito legal.
Então, eu comecei Economia, eu costumo dizer que eu entrei para Economia meio caí de para quedas em Economia, não foi uma escolha, o que é muito engraçado. Eu comecei na verdade, quando entrei na faculdade, eu comecei fazendo Matemática Aplicada. Eu estava na UFRJ e tentei pedir transferência para Comunicação, não tinha vaga para transferência e eu acabei cursando um semestre na Comunicação que eu nunca usei para nada e aí eu pedi transferência para Economia porque tinha vaga para transferência. Então foi bem por acaso assim e pensei, a se eu não gostar eu faço vestibular de novo, né. Não vou perder aqui essa possibilidade. Aí eu entrei para a Economia e eu não vou te dizer que eu gostei logo de cara, eu percebi logo de cara que eu levava jeito para fazer Economia porque eu tenho uma pegada bem quantitativa, gosto muito, levo jeito para matemática, sempre gostei, mas a Matemática Aplicada foi demais para mim, me faltou o lado da humanidade, da ciência social. Então quando em me encontrei numa disciplina que estava entre a questão matemática e a questão mais humana, a questão social, eu gostei desse lado, mas eu demorei muito e olha, muito mesmo, foi lá no meu doutorado só para entender que eu gostava de Economia também, para encontrar um tema dentro da Economia que eu gostava que foi quando eu conheci a questão de Economia do cuidado, de Economia da reprodução social, questões mais feministas, né?
Laura Karpuska: Eu acho que isso é uma coisa que a gente ouve um pouco aqui com as nossas entrevistadas. Acho que algumas que a gente entrevistou tinham certeza que queriam Economia. Eu mesma acho que Economia não era uma palavra que nem estava no meu repertório quando fui fazer, um pouco antes de fazer vestibular, mas acho que muita gente se identifica com essa sua questão de que, olha eu gosto de matemática, de artigos quantitativos, mas eu queria ter perguntas que são relacionadas ao comportamento humano, à Sociologia, às Ciências Humanas, né? Ciências Sociais. Então eu acho que é muito legal a gente ouvir que existe essa identificação comum entre nós, né?
E Luiza eu queria perguntar um pouco para você também sobre essa sua trajetória, né? Do bacharelado e do mestrado no Brasil e depois da sua decisão de fazer o PhD na New School em Nova York. Como é que foi? Foi uma coisa natural para você? Você entrou na graduação sabendo que você queria fazer mestrado e doutorado ou foi uma coisa que foi se construindo?
Luiza Nassif: Olha, se eu não sabia que queria Economia, que eu queria fazer mestrado muito menos. Na minha família eu sou a primeira a ter um diploma de graduação. Nem minha mãe nem meu pai tem diploma de graduação completos. Tem cursos técnicos e tal, então isso não veio de casa, assim, veio muito… é pois é, eu acho que eu acabei fazendo o mestrado um pouco porque eu não sabia o que fazer com aquilo, né? Eu fiz Economia, eu não gostava tanto daquilo, eu não tinha muito claro para mim com o que trabalhar, não tinha nenhuma vontade de trabalhar numa empresa ou em banco ou enfim, tinha assim uma possibilidade de repente de fazer um concurso público para um BNDES, já estar em alguma coisa um pouco mais de políticas públicas, mas não estava muito claro para mim o que fazer com aquilo e aí na falta, foi quase, foi meio inércia mesmo sabe? É muito doido pensar que eu entrei na Economia por acaso e acabei, virei doutora em Economia quase por uma inércia, né? Mas eu fui indo meio assim e aí eu resolvi fazer o mestrado, fiquei na dúvida se fazia, fiz Anpec, ali para mim já estava claro que eu tinha uma tendência mais heterodoxa, que eu queria ficar entre essas escolas, então na Anpec eu fiquei na dúvida entre ir para a Unicamp ou ficar na UFRJ e acabei decidindo ficar na UFRJ aí sim já com a ideia de fazer um doutorado fora, uma vez que eu comecei, que eu entrei nesse caminho, pensei pelo menos vamos tentar ir para fora, que era uma vontade que eu tinha e essa trajetória de vir para fora, a Laura Carvalho da USP, teve um papel muito importante para mim porque eu a conhecia já quando eu estava na graduação e ela estava no mestrado, então acompanhei o processo dela de ir para fora, de ir para a New School né? E a gente estava trabalhando juntas no final do meu mestrado quando eu apliquei para o doutorado em São Paulo, na FGV e ela me ajudou a tomar essa decisão, ela me incentivou muito a ir para fora e especificamente ir para a New School, né? Enfim, e aí foi isso, e aí eu vim e aqui sim eu encontrei um pouco mais algo que motivava dentro da Economia, mas até aquele momento foi meio fluindo, não sabia muito bem o que fazer, não queria voltar para a estaca zero, né? Uma vez que você já tem um mestrado em Economia, já é bacharel, agora já tem o mestrado, aí a gente encontra alguma coisa para fazer com isso, né?
Laura Karpuska: Sem dúvida. Eu achei muito legal a sua resposta porque eu tendo a achar que a minoria é aquela que sabe com certeza, principalmente nessa idade adolescente, todos os passos que vão ser dados, né? Eu tenho impressão que nessa fase, para quem tem uma família que não é uma família acadêmica ou não é uma família de pessoas que tem uma profissão parecida com aquela que foi escolhida pelos filhos, pelos jovens da família, é muito difícil você tomar decisões de forma certeira, né? E é muito importante o meio que você acaba ficando porque aí são essas, essa que você chamou de inércia eu até comentaria que talvez fosse uma influência do meio né? Na Economia é muito comum as pessoas fazerem pós-graduação então a gente meio que vai por inércia, mas é porque o meio também nos influenciou. E como é importante temos mulheres que nos inspirem, que nos mentorem, como foi no seu caso a inspiração e a mentoria da Laura Carvalho, né? É muito legal. Inclusive é uma coisa que a gente tenta fazer no podcast, porque, infelizmente, mulheres são poucas no Brasil na academia ainda e nem todas nós vamos ter a sorte de trombarmos aí com uma Laura no meio do caminho. Então quem sabe as pessoas ouvindo seu podcast hoje, a sua entrevista, elas possam se sentir orientadas e mentoradas aí pela Luiza, mesmo que virtualmente, né?
Luiza Nassif: Ai, obrigada. Nossa, é algo que eu tento muito fazer. Ter um certo cuidado com as minhas alunas em perceber quais são as dificuldades. A gente percebe muito claramente que as mulheres, elas têm mais dificuldades de primeiro encontrar motivação dentro da Economia, né? Os exemplos são masculinos, enfim toda a teoria, uma teoria construída por homens brancos, então isso fica muito claro. A gente se sente menos capaz de contribuir quando na verdade é o oposto. Eu acho que as mulheres, as minorias de modo geral, elas têm muito mais a contribuir com a teoria, com a aplicação e por aí vai, com a experiência de vida para a Economia do que a majoritária parte da nossa disciplina que são homens brancos de classe média, enfim, que encontram uma facilidade maior em se motivar em fazer Economia. Então acaba sendo um papel importantíssimo esse, então espero que sim, que eu consiga motivar, mas também espero que eu consiga motivar professores e professoras que entendam a importância de nutrir essas relações, de cuidar de alunas, de cuidar de alunos negros, por exemplo e de ter esse olhar para a dificuldade que esses alunos encontram em se motivar na Economia mesmo.
Laura Karpuska: Perfeito. Eu inclusive agora te pergunto quando você acha que você percebeu que existia uma disparidade de gênero na Economia especificamente, quando que você notou isso?
Luiza Nassif: Olha, o primeiro grande incômodo que eu tive, que eu lembro claramente foi na aula de macroeconomia I, quando eu ouvi, macroeconomia I não, zero né? Macroeconomia não, introdução à macro, o meu primeiro semestre de Economia quando eu vi o exemplo, famigerado exemplo, não sei se você também ouviu esse exemplo de que quando o patrão casa com a empregada o PIB cai. Não sei se era…
Laura Karpuska: Nossa, não ouvi. Ainda bem.
Luiza Nassif: E aquilo ficou assim ressoando na minha cabeça e é engraçado que nessa matéria eu gosto muito de contabilidade até hoje e eu perguntava muito e a professora Margarida, era mulher também, e era bem temida. Os alunos tinham muito medo da Margarida e a Margarida gostava muito de mim e eu fazia perguntas o tempo inteiro na aula e ela entrava na sala de aula e já falava Luiza senta aqui na frente e tinha um menino na sala que ficava me sacaneando o tempo inteiro, enfim aquilo foi muito difícil para mim porque eu fazia essas perguntas e porque eu fazia certas perguntas um pouco fora do óbvio, mas que para mim hoje em dia são tão óbvias então eu me lembro que eu perguntei logo depois que ela fez esse exemplo, falei, mas então você está me dizendo que se todo mundo começar a fazer pão em casa o PIB vai cair? Isso não faz nenhum sentido e aí esse menino ficava me sacaneando porque eu fazia essas perguntas. Enfim, isso foi, eu demorei um pouco para entender que não, que eu não estava errada, que eu não era estúpida, entendeu? Que eu não era uma péssima aluna porque eu estava fazendo aquelas perguntas e eu acho que eu tive uma consciência muito maior disso quando eu fui para a New School, a gente fez, a gente montou isso bem mais recente, a gente montou um grupo lá chamado FESA – Femist in Economics Students Association, no qual a gente se reunia uma vez por semana para conversar sobre esse tipo de experiência que a gente sentia, a dificuldade que mulheres tem de fazer perguntas em aulas, como a gente muda isso, como que a gente incentiva os professores a colocarem mais diversidade nas ementas das aulas, então a gente fez um estudo, pegou todas as ementas dos cursos e viu, assim, dentro das ementas, o que era diversidade, o que era eram homens brancos, o que eram autores escritos por homens brancos, ocidentais, normalmente do norte global e isso aí me deu muito mais sentido a essas experiências passadas. Eu acho que eu não tinha uma consciência naquele momento feminista, eu tinha um pouco uma consciência de classe, eu acho, que veio quando eu saí do colégio, que eu estudei num colégio muito tradicional, num colégio de ponta e eu me senti um peixinho fora d’água ali e eu só entendi por que eu me sentia desse jeito quando eu entrei para a universidade federal, quando eu entrei para uma universidade pública meu horizonte se expandiu completamente. Vieram consciências comuns assim, não foi exatamente perceber o machismo, mas foi perceber que existe discriminação, muita discriminação dentro da academia econômica e na sociedade de modo geral.
Laura Karpuska: É muito importante a gente conseguir olhar para trás as vezes e conseguir recontar para nós mesmas as nossas experiências, né? Porque as vezes a gente não consegue racionalizar elas enquanto a gente vive. Bom, a geração nova acho que vai viver um ambiente muito diferente do nosso, né Luiza? Porque essas mulheres, essas jovens mulheres já crescem com essas indagações e já crescem com a sementinha de saber que tem algo errado. Então acho que vai ser diferente daqui em diante, mas é muito importante para nós que não vivemos tanto com esse debate que a gente possa olhar para trás e reconstruir algumas coisas.
E a sua resposta mostra a importância da diversidade na Economia em relação às perguntas que podem ser diversas também, né? A Economia traz um ferramental tão rico para a gente estudar o comportamento humano que a gente usa esse ferramental de forma diversa e ampla porque são muitas questões do comportamento humano que são interessantes para nós na Economia. E que essa diversidade dos pesquisadores ajude a diversificar também as perguntas da Economia.
Eu queria falar um pouquinho sobre Economia do cuidado com você. É uma coisa que é para mim muito recente, eu pessoalmente admito a minha ignorância, não conhecia nada sobre isso, então eu queria aproveitar para pedir uma mini aula para nós, para mim e para as nossas ouvintes.
Conta para gente o que é a Economia do cuidado e que tipos de debates de políticas públicas que são feitos nesse campo da Economia.
Luiza Nassif: Economia do cuidado é tudo que diz respeito a essas atividades do lar que são necessárias para sobrevivência e reprodução do ser humano. Então, por exemplo, limpar a casa, cuidar dos filhos, cuidar dos idosos, cozinhar, lavar a roupa e essas atividades elas são majoritariamente feitas por mulheres e frequentemente elas são não remuneradas. No Brasil na verdade a gente tem um exército de mulheres negras que são as empregadas domésticas que são exploradas e fazem esse trabalho na sua maioria. Mas essas mulheres também, é engraçado que as pessoas não param para pensar tanto nisso quando elas estão vendo do ponto de vista da classe média, elas mesmas têm suas famílias, elas precisam voltar para casa e cuidar dos seus filhos e cozinhar e lavar roupa e por aí vai. Então tem uma parte da nossa economia que as vezes, e no Brasil isso acontece frequentemente, ela ainda é parte do mercado pago, então acontece muito da gente terceirizar essa economia do cuidado ou adquirir bens, sei lá comida pronta no supermercado, isso seria uma parte da economia do cuidado. Então tem formas, via mercado, de você diminuir dentro do seu lar o número de horas necessárias para você produzir esses bens e serviços que você precisa para sobreviver e se reproduzir, mas majoritariamente as horas que ainda faltam, e sempre falta, seja você limpar os pratos depois de você comer a sua comida pronta, elas são exercidas por mulheres. Isso a gente percebe através de pesquisas que a gente tem. Infelizmente o Brasil não tem isso, o Brasil não tem essa pesquisa, a gente ainda tem muito pouco, eu acho que muito pouco da economia do cuidado é visibilizada no Brasil, inclusive por falta de dados. Então a gente tem o que a gente chama de uma pesquisa de uso do tempo que é uma pesquisa na qual você tem diários que normalmente são parte de amostras do consumidores, ou ele é parte do censo, em diferentes países isso muda um pouco, mas ela é uma pesquisa em amostra na qual você tem pessoas que guardam o diário por 24 horas, comumente, e elas colocam nesse diário o que elas fizeram a cada meia hora e aí elas colocam ali a atividade e aí a gente pega esses dados e a gente consegue ver quantas horas por dia se gasta fazendo essas atividades não remuneradas e quem está fazendo essas atividades. Enfim, e no Brasil o que a gente tem, a gente até tem alguns dados que são associados à PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mas ela é uma pesquisa na qual ela faz uma pergunta assim “Quantas horas em média na semana passada você gastou lavando, cozinhando ou…” e agrega assim um monte de coisa. E tem um viés enorme essa pesquisa porque vem de uma percepção do tempo da pessoa e essa percepção em si, ela já tem um viés de gênero. Então no Brasil a gente não consegue, a gente, apesar de com esses dados a gente já perceber que existe um viés de gênero também no Brasil, a gente não consegue medir isso completamente. Fica muito difícil você elaborar políticas públicas focadas quando você não tem esses dados. Você consegue assim, fazer políticas públicas óbvias, por exemplo, creche pública é algo que ajuda muito a diminuir o número de horas que as mulheres precisam trabalhar dentro de casa e liberar essas mulheres para poderem fazer outras atividades remuneradas. A outra questão, e aí já vem de estudos um pouco mais focados que a gente faz, por exemplo, é investimento em outras infraestruturas. Então, por exemplo, quando você investe em transporte público, você melhora a capacidade de mulheres se deslocarem e isso ajuda muito também porque você diminui o número de horas que demora, sei lá, para levar a criança na creche ou para buscar alguém em algum lugar para fazer as compras e para ir para o trabalho, inclusive. Então de modo geral, as políticas públicas voltadas para apoio a essa economia do lar elas normalmente tentam diminuir o número de horas necessárias para certas produções e certas atividades para as mulheres, mas também tem toda uma questão de gênero como eu vim dizendo. Uma parte também de políticas vem tentar aumentar a participação dos homens nessas atividades, tentar dividir de forma um pouco mais igualitária entre os casais, enfim, isso principalmente, aqui falando para casais heterossexuais onde você tem um homem e uma mulher, você vê essa divisão muito desigual. Você vê essa questão do gênero muito, muito clara. Então você também tem políticas possíveis para mudar isso e tem um grupo de políticas que tem uma tentativa de aumentar a participação de homens na paternidade, você tentar aumentar o envolvimento de homens com filhos e filhas e isso tem um aspecto intergeracional, inclusive, porque vem muito da formação mesmo. A gente observa inclusive diferenças na divisão do trabalho dentro de casa se o casal tem homem filho ou se tem homem mulher, então você vê já, eu tenho uma aluna, enfim ela não foi minha aluna na verdade, uma aluna lá do instituto, lá do Levy Economics Institute, Marokey Sawo, que fez um estudo no ano passado muito interessante que era sobre a divisão desigual para atividades do lar na Economia do cuidado de crianças na Tanzânia. Então ela via que as crianças mulheres tinham muito menos tempo para brincar e ir para a escola do que os homens, do que os meninos porque isso já vem ali, vem de muito, muito, muito cedo infelizmente.
Laura Karpuska: É, acho que a gente consegue inclusive olhar para trás na nossa própria vida e ver que houve alguma, alguma diferença mesmo, se não com a gente em específico, com outras pessoas ao nosso redor. Que existem incentivos diversos que são dados para as mulheres e para homens na infância, enquanto se devem ou não se preocupar. A cobrança para que os homens sejam melhores alunos, para que eles foquem na carreira deles ela é muito mais presente e óbvia do que para as mulheres na maioria dos lares. Claro que existem exceções, mas realmente existe uma diferença muito grande. Eu acho muito curioso você trazer essa discussão sobre a questão das alocações das horas porque acho que, bom, todos os economistas concordam com a simplificação de o que a gente gera de produto ele é produzido por capital e por trabalho e que a gente disponibilizar mais pessoas para que elas consigam formar mais capital humano, para que elas se tornem mais produtivas e para que elas sejam força de trabalho, melhora o nível médio de produtividade de um país e também melhora o nível agregado do produto que a gente pode usar para distribuir, então parece uma área muito interessante, não só para questões de gênero como um todo, mas também para questões sobre a macroeconomia e os agregados econômicos. Muito, muito interessante.
Luiza Nassif: Pois é, uma das grandes lutas que a gente tem dentro desse campo é de tentar valorizar esse trabalho, contabilizando ele no PIB. Então tem um movimento de revisão do PIB e na verdade o grande problema, é engraçado isso, o grande problema dos movimentos de revisão do PIB é que você tem movimentos demais de revisão do PIB, você tem milhões de diferentes projetos de como o PIB poderia ser revisado, alguns deles também tratando da questão do meio ambiente, então como qualquer medida, medida macro, ela é, ela é criada de uma forma um pouco arbitrária. Você toma uma decisão, o que está no PIB o que não está no PIB, isso não vem de Deus, isso é uma decisão humana que se decidiu que essas atividades que são trocadas no mercado de trabalho por dinheiro, elas fazem parte do PIB, enquanto outras elas não são. E aí, na verdade, tem um lado, de claro, a necessidade de liberar essa mão de obra para fazer parte do mercado de trabalho, mas tem um lado também que é muito difícil, que eu venho pensando cada vez mais, que é você tentar entender que a dona de casa, ela em si, está produzindo um valor enorme para a sociedade e valorizar isso. E você entender que, não necessariamente, a gente precisa de mais mão de obra, enfim, a gente precisa de mais mão de obra no mercado de trabalho que, o que essas políticas públicas precisam atingir é a capacidade de deixar essas mulheres irem para o mercado de trabalho, mas na verdade é a capacidade de deixar que essas mulheres façam o que elas queiram. Que elas sejam donas de casa se elas quiserem ser donas de casa e se sentirem valorizadas e se sentirem visíveis e ter esse trabalho, enfim, que esse trabalho seja realmente contabilizado na economia ou você ter mulheres que querem ir para o mercado de trabalho e ir para o mercado de trabalho, ou mesmo a possibilidade de você ter homens que decidem reduzir as horas que eles trabalham no mercado de trabalho e produzam em casa. A gente na verdade teve uma mudança no modelo da economia, existia um modelo no qual você tinha o que a gente chama aqui de o modelo do ganha pão, no qual você tem uma pessoa na família que vai trabalhar no mercado e uma outra pessoa que fica em casa e cuida da casa. E esse modelo foi mudando aos poucos para o modelo onde você tem o “two wage earners”, eu não sei com a gente chama esse modelo em português, essa norma familiar, no qual os dois vão trabalhar no mercado. E ninguém parou para pensar nessa mudança, o que se fazia com aquelas atividades necessárias que eram desenvolvidas no lar e que ficaram sob o comando de uma pessoa, essa pessoa que não trabalhava fora e ao mesmo tempo você tem uma mudança no salário porque o salário sob o modelo ganha pão, ele é um salário suficiente para você manter uma família inteira, enquanto que quando você tem uma mudança para o modelo onde os dois vão trabalhar, esse salário ele diminui, então você tem um problema de exploração que vem lá de cima, já no mercado de trabalho e uma incapacidade de você suprir essas horas e aí a solução no Brasil que se dá, por exemplo, você então contrata alguém pagando muito, muito pouco para ser explorado dentro de casa. Então você tem uma certa cadeia de exploração que acontece aí. Então a gente tem muito essa ideia de crise do cuidado dentro da economia também para entender como isso foi acontecendo aos poucos e a gente tem essa visão de que essa, a gente rompe com esse problema vindo lá de baixo e valorizando essa Economia do cuidado, essas atividades, elas são extremamente importantes. Então uma grande parte do trabalho que a gente faz no lado teórico, inclusive, é visibilizar isso, é discutir a importância disso e lutar para que as pessoas deem mais valor a produção do lar.
Laura Karpuska: Sim, sem dúvida. Acho que esse é o debate. A valorização do trabalho que não é feito por todos, que tem consequências socioeconômicas num país como o Brasil e, também a discussão que foi muito interessante que você trouxe sobre a questão das liberdades de escolha e aí eu acho que tem um debate até mais filosófico sobre liberalismo mesmo. Liberalismo de verdade, o liberalismo sobre as liberdades individuais mesmo, que a gente idealmente quer viver numa sociedade em que as pessoas sejam livres para escolherem o caminho delas e independentemente da posição social e da cor delas e do gênero também. Então acho que esse é o debate mais interessante também em relação a essa Economia do cuidado. Eu volto para uma coisa que você falou anteriormente que foi sobre você se encontrar como uma economista heterodoxa, você respondeu isso na nossa primeira pergunta. E é uma coisa que é comum ao Brasil, ter esses rótulos de economistas ortodoxos e heterodoxos que muitas vezes acabam delimitando o debate econômico no Brasil, eu diria. A gente inclusive falou aqui com a Laura Carvalho sobre isso quando ela foi a nossa entrevistada.
Como é que você acha que economistas de diversos campos da Economia, Luiza, podem vencer esses rótulos e podem estimular um ambiente de debate que eu chamaria de mais saudável aqui no Brasil?
Luiza Nassif: Então, eu acho que a gente consegue se unir em certos valores e pautas e objetivos, como por exemplo, aqui a gente sabe que tanto eu quanto você, nós temos em comum o fato de que a gente está lutando contra o machismo dentro da academia e na sociedade como um todo. Então pouco importa se eu sou heterodoxa e você ortodoxa ou o que for, a gente tem isso em comum. O que faz a diferença é como a gente observa esse problema, o tipo de ferramentas que a gente tem. Então na verdade, a gente é muito complementar. Então eu diria que se a gente consegue encontrar objetivos em comum é muito possível e é, inclusive, muito favorável que a gente tenha formações distintas e que a gente consiga trazer essas ferramentas diferentes que a gente aprendeu para pensar sobre o problema de formas diferentes. Enfim, o que eu vejo frequentemente é uma ideia entre os heterodoxos que não existe um pensamento crítico dento da ortodoxia, então esse seria o grande preconceito da heterodoxia com a ortodoxia, como se os ortodoxos eles são por definição status quo, não querem mudar nada e estão ali trabalhando para manter o sistema tal qual é via, uma, enfim, a reprodução de um sistema ideológico mais de direita, seria assim. Eu acho que essa visão é bem arcaica para começar e ela é muito, enfim é um preconceito mesmo, é falta de informação, é falta de convivência inclusive e eu estou fora do Brasil há muito tempo, eu estou fora do Brasil já há sete anos, mas a impressão que eu tenho é que o mundo ortodoxo e heterodoxo aqui nos Estados Unidos ele ainda é mais engessado, nem tenho contato com as pessoas da ortodoxia para ser sincera, eu não tenho nem a possibilidade de aplicar para um emprego numa universidade ortodoxa. Não existe esse intercâmbio de jeito nenhum. E a minha visão é que no Brasil, por definição, a gente já é uma economia periférica, então quando a gente pensa em como desenvolver a economia do Brasil, isso naturalmente já coloca a gente num ponto de vista um pouco mais crítico daquilo que é mainstream, daquilo que é majoritário no campo global. Então mesmo nesse sentido, quando a gente sai de pensar nos problemas micro no Brasil e começa a pensar um pouco mais no macro Brasil e em economia global de modo geral, nisso a gente já tem aí um ponto em comum muito, muito forte. Então eu diria que é focar no que a gente tem de objetivo e entender que ferramentas elas estão aí para alcançar objetivos. As ferramentas elas não são, enfim, elas não são neutras, claro, então precisa-se desse entendimento, mas elas não são o que definem quem você é.
Laura Karpuska: Com certeza as ferramentas não definem quem você é. É a honestidade intelectual, rigor técnico que vão definir um bom debate acadêmico ou um debate técnico público. Então sem sombra de dúvida é isso que importa mesmo.
Luiza, a gente está chegando no finalzinho do nosso podcast e a gente sempre fecha com uma pergunta que eu, pessoalmente, gosto muito que é a seguinte.
Se você pudesse voltar no tempo e pudesse falar com a jovem Luiza, o que você falaria para ela?
Luiza Nassif: Eu vou voltar para esse ponto que a gente falou aí dessa consciência do machismo, da consciência de classe, então acho que eu faria, eu iria em dois pontos. Enfim, isso é parte da minha trajetória então é difícil falar que eu poderia ter mudado alguma coisa ali. Mas a minha trajetória ela vem em dois pontos. Vem primeiro uma consciência de que aquilo que eu estava sofrendo era um tipo de discriminação, que existia uma discriminação contra mim pelo, enfim, pelo gênero principalmente. Então eu acho que eu chegaria ali para aquela Luiza e falaria que isso que você está sentindo muita gente sente, mas principalmente acho que o que é importante eu acho que isso falta muito para quem está trabalhando nesses campos é ter uma consciência não só daquilo que você sofre de discriminação e tentar lutar contra esse sistema, mas você também entender como você é privilegiado, quais são os privilégios que você sofreu e como você é parte de um sistema que discrimina também. Então eu acho que mais importante do que a Luiza entender, mais importante do que eu ter entendido lá atrás que eu sofri algum tipo de discriminação foi para mim ter entendido que eu era parte de um sistema que discrimina também. Então eu como mulher branca, qual o meu papel dentro da economia de romper com a discriminação de raça principalmente. Enfim, então eu acho que se eu pudesse trazer essa consciência para a Luiza jovem, trazer essa consciência para mim um pouco mais cedo eu acho que eu poderia ter feito coisas diferentes e ter, enfim, ter trazido mais mudança ao meu redor.
Laura Karpuska: Eu acho que as jovens Luizas de hoje já tem tudo isso em mente. Eu acho que a geração, a gente até falou sobre isso já, a geração mais nova ela tem essa consciência que eu acho que eu e você não tivemos tanto ou que a nossa geração, na média, não teve tanto. Eu acho que é uma boa forma da gente fechar o podcast pensando sempre que existe complementabilidade em pessoas e economistas que usam ferramentas diferentes, que tem as mesmas preocupações seja com o Brasil ou com o mundo e a gente fica por aqui agora.
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O podcast das Economistas é uma produção afiliada ao grupo das Economistas da USP.
A nossa produtora é a Ediane Thiago, a Laura Karpuska e a Paula Pereira são as coordenadoras do podcast e as demais membras do comitê das Economistas são a Fabiana Rocha e a Maria Dolores Dias. Nosso produtor de som é o Fernando Yane, cantora Flavia Albano, trompetista Alan Marques, designer Tata Amato e a nossa entrevistada hoje foi a Luiza Nassif.
Muito obrigada e até o próximo podcast das Economistas.
Ouça o episódio na íntegra abaixo: